O Cantil

Friday 30 March 2012


Recebo a notícia de que O Cantil será apresentado durante o mês do teatro de Fortaleza*. A peça, velha, premiada, famosa; gerava suspeitas. Primeiro por propor a leitura de um texto brechtiano, e convenhamos, tudo relacionado à Brecht no teatro deve ser analisado com cuidado. O número de embustes e falhas miseráveis que as trupes brasileiras perpetuaram nessa seara quase se equipara ao número de tentativas. A verdade é que não me cheira bem, o Brecht. Político, pedagógico, vanguardista - o que por si só já é uma combinação perigosa -, facilmente atribuído à mesma laia de Maiakovski. Para piorar as coisas, no Brasil especialmente, é muito mal lido e interpretado.

Descubro, ainda, que a peça apresenta uma proposta estética inovadora e que não há diálogos entre as personagens. Seria então mais um caso de preciosismo técnico suplantando o todo, erro tão cometido pelo teatro brasileiro? A síndrome da Técnica Perfeita Na Peça Errada já adquiriu proporções de hashtag.

O circo estava montado.

Fui ao teatro SESC Iracema - que aliás é engraçadinho, mas não passa disso - com más intenções. É-me apresentada a trama: uma parábola, dois homens no deserto, o servo e o patrão. Bonecos, vestidos quais múmias, guiados como marionetes por seus "mestres". O figurino agradava. Os aspectos visuais, aliás, estavam impecáveis.

Várias cenas metafóricas se apresentam, como quadros sequenciais. Neles, a opressão que o patrão imprime sobre o servo se repete em diversos níveis. Os "puppeteers" fazem parte de um sobrenível que antecede o diegético, o que, devo dizer, é uma proposta interessante. Não ouso dizer nova, mas interessante. Eles se entreolham, vestidos de preto (mas com os rostos à mostra), telegrafam o que seus "bonecos" estão prestes a fazer. Os inteligentes não assistiriam a isso sem lembrar de "Xadrez", do Borges. Enfim, bonito.

O mesmo não se pode dizer da leitura da peça. O simplismo de tornar o servo um oprimido incondicional desconstrói a sutileza do famoso dramaturgo que, diga-se o que for dito, não é nem nunca foi estúpido. Não. Brecht não é maniqueísta: para ele, tanto servo quanto patrão são culpados, coautores da opressão. Aí repousa todo o coração de sua filosofia. Quem oprime é tão culpado quanto quem se deixa ser oprimido, escravizado. O mesmo se repete em outras situações. Quem lê, quem escreveu. Quem atua, quem assiste.

Esse trunfo brechtiano, essa riqueza de possibilidades, a trupe do teatromáquina, simplesmente não alcançou. Antes, ela caiu num marxismo redundante, no velho e cansado marxismo duro, cru, sem arestas.

Imperdoável? Talvez. Mas deixo de rigores e dissabores para dizer que a peça, afinal, funciona. Visualmente estimulante, quiçá hipnotizante, sua narrativa termina por agradar muito mais do que desagradar. Há de se elogiar muitas coisas, mas principalmente o resultado final como um todo.

Curiosamente, minhas desconfianças originais estavam corretas e, ao mesmo tempo, erradas. Corretas porque os erros estão lá, e erradas porque eu me diverti e a peça vale a pena.

Mais informações: teatromáquina,

* A cidade de Fortaleza foi premiada com nada menos que três festivais de teatro durante o mês de Março. Era impossível andar no centro e não esbarrar com alguma peça, ao ar livre, ou com uma fila de pessoas prontas para adentar um teatro. Estes, aliás, estavam lotados, tanto nas cadeiras quanto nas agendas. Fantástico. A cena de Teatro fortalezense está, apesar de todas as adversidades, vivíssima.

0 comments: