Rascunho: anotações sobre Adivinhadores de água, de Eduardo Escorel, publicado pela editora Cosacnaify.

Monday 22 June 2009

É sintomático que o livro Adivinhadores de água faça parte da bibliografia da disciplina História do Audiovisual Brasileiro II, que abrange o fim da década de 50 até o começo da de 70, e também da História do Audiovisual Brasileiro III, que toma daí para frente e que tem como um dos enfoques a retomada do meio dos anos 90. Eduardo Escorel aponta para o passado próximo, o Cinema Novo, para refletir o seu presente — os ensaios foram escritos há cerca de dez anos, então é surpreendente que soem ainda tão atuais — e propor uma ideia de cinema nacional. O que há de mais valioso no livro é que todos os ensaios têm um matiz de relato, tudo é contextualizado e fica claro que quem diz e propõe tudo aquilo participou do Cinema Novo, ainda que um pouco tardiamente, pensou a sério as ideias de Paulo Emílio Salles Gomes e, agora, tenta entender o que se passa.


A nota introdutória esclarece que o público-alvo primário do livro são os estudantes de cinema, ou seja, futuros cineastas, críticos e teóricos. Tendo isso em mente, a primeira parte do livro, intitulada também Adivinhadores de água, levanta uma série de questionamentos que devem ser levados em conta pelos criadores de filmes para que se possa fazer cinema no Brasil: “Se a televisão supre as necessidades de ficção de milhões de espectadores, quem precisa dele?”; faz sentido fazer cinema “televisivo” (adaptações de séries de TV, melodramas a la novelas etc) para conseguir bilheteria?; em uma sociedade tão heterogênea quanto a brasileira, a quem interessa a existência de um cinema nacional?


Segundo Escorel, o cinema brasileiro não deve competir com o cinema importado e com a televisão pelo mimetismo, mas sim pela diferença. O filme mais visto em 2009, segundo dados de 14 de junho, é uma produção brasileira: Se eu fosse você 2, com mais de 6 milhões de espectadores. Divã fez mais de 1 milhão e A mulher invisível teve mais de 200 mil espectadores no seu fim de semana de estreia. Os três filmes são comédias co-produzidas pela Globo Filmes, A mulher Invisível é distribuído pela Warner Bros., abundam atores globais e, embora não sejam filmes necessariamente ruins, têm um dedo apontado para as comédias norte-americanas e outro, para o padrão Globo de qualidade, dois modelos que costumam vender bem no Brasil. Ainda que esse sucesso de público do cinema brasileiro demonstre que ele não está tão frágil assim — o mau desempenho em 2008 trazia à tona o medo de que a retomada estivesse chegando ao fim, tornando-se mais um dos ciclos efêmeros descritos no livro —, não é nada próximo do que Escorel aponta como saída para um cinema nacional.


Segundo o autor, os mecanismos protecionistas do Estado possibilitam os surtos espasmódicos de filmes que não se propõem as questões apresentadas acima. “Criado assim em estufa, o cinema pode ter um estilo? Pode deixar de ser apenas o reflexo de estilos criados nos países hegemônicos? Ou melhor ainda, pode escapar de ser um cinema de talentos efêmeros, de filmes isolados que se destacam mas não chegam a alcançar um valor transcendente?”. Os três filmes supracitados conseguiram ótimas bilheterias, mas isso se reverte exatamente a o quê? O lucro não é repartido com seu principal financiador, o Estado, e nem me parece haver muito ganho à cultura nacional; quem lucra mais é a Globo Filmes e seus associados, que, a meu ver, não precisam de mais incentivo para fazerem cinema. No entanto, estes mesmos mecanismos de captação de dinheiro público possibilitam a existência de outros filmes, mais próximos ao ideal de Escorel e dirigidos pelos tais Adivinhadores de água do título do livro.


A anedota do adivinhador de água que consegue, diante de condições totalmente precárias, achar água para toda uma cidade é bonita e ilustra bem certo tipo de cineasta que faz o cinema brasileiro renascer de tempos em tempos. Embora seja visto como uma figura positiva, a acolhida da sociedade não o é: os adivinhadores de água não conseguem firmar suas raízes, acabam massacrados ou exilados pela própria sociedade. Na primeira parte do livro, Escorel usa como exemplo alguns expoentes da Retomada, como a Tata Amaral; na segunda, os adivinhadores de água são as pessoas em foco em cada um dos ensaios: Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Mário de Andrade e Chico Antônio.


Devidamente intitulada Estrela parabólica, a segunda parte se distancia dos textos obviamente políticos da primeira parte — no sentido de que a produção de filmes é necessariamente uma atitude política, mesmo que os filmes não se queiram reflexivos ou discursivos —, apresentando textos muito pessoais sobre as pessoas citadas anteriormente neste meu texto. Esse desvio — parábola — aparentemente dispersivo na forma de abordagem apresenta, a meu ver, exemplos pontuais do que pôde ser feito pelo cinema brasileiro, caminhos que, ainda que impossíveis de retraçar hoje, devem ser estudados para que se possa algum dia fazer cinema no Brasil sem que tenhamos que depender de ciclos produtivos e de copiar o que se faz em outros meios. Mário de Andrade tem importância especial para Eduardo Escorel e, ainda que não tenha escrito muito sobre o cinema brasileiro, é referência constante para um pensamento sobre o que é nacional e moderno, e mesmo a história de Chico Antônio tem lugar para se pensar no que é estilo nacional.


A ponte entre as duas partes do livro está, de fato, logo ao final da primeira. Discutindo sobre o que é o estilo nacional brasileiro, Escorel cita Mário de Andrade sobre o Aleijadinho, “nosso primeiro grande artista” nacional, capaz de traduzir a heterogeneidade brasileira numa imitação original. A proposição — aceitar que não há modelos a seguir e procurar sua própria saída — é vaga e talvez impossível de definir sem esquematizar, e é nesse sentido que os ensaios da segunda parte do livro servem como “exemplos” e complementam a argumentação de Adivinhadores de água. Ainda que não haja nenhuma receita no livro para que se possa fazer um cinema que tenha outra importância que não econômica, acredito que sua leitura e reflexão já são um passo adiante para quem quer fazer cinema no Brasil.

8 comments:

Jimmy said...

É basicamente o que acontece com todas as outras artes, por aqui. Literatura, então, nem se fala...

Cidadão ³ said...

Exatamente a que você se refere?

Jimmy said...

A essa problemática do Brasil não se concentrar na arte que pode produzir (esse "pode" suportado pelo fator histórico) e "copiar" o exterior em tudo, estando sempre um passo atrás.
Concordo com o Mário de Andrade, Aleijadinho foi nosso primeiro grande artista. E concordo com Antônio Cândido, a nossa literatura, a nossa arte é o que importa.

sem mais said...

Mas, tipo, a percepção desse ciclo é até um desserviço. E esse jeito de copiar as coisas de fora... digamos que a educação [artística] é um processo de contato, compreensão e reaproveitamento da produção artística [que em maior parte é estrangeira] e isso é indispensável para a construção de uma identidade [a principio pessoal e gradativamente nacional] que pode, passoapasso, tornar relevante a arte e, com tempo, numa indústria que permita ao ciclo se tornar um circuito. Aliás, nessas discussões costuma ter um certo tom que faz parecer que o contato com a produção estrangeira é nocivo, quando ele é necessário e inevitável.

O mais bonito do Adivinhadores de Água, porém, é a idéia de que tem arte em tudo que é lugar. As vezes, eu acho, tem arte até dentro da arte.

Cidadão ³ said...

Mas o Escorel não diz que a cultura estrangeira é dispensável, enfim.

Se você pegar a citação sobre o Aleijadinho, você vê que o Mário está justamente elogiando a forma como a cultura estrangeira e tradicional e tudo mais faz parte da obra do Aleijadinho e de como ele é grande por ser original no meio de tudo isso.

Jimmy said...

O que é nocivo não é o contato. O nocivo é se preocupar mais com a arte exterior do que com o estilo nacional. E eu discordo em parte sobre a educação artística ser um mero processo de contato, assimilação e reaproveitamento do que já foi feito; tem mais coisa aí.

sem mais said...

Eu não me referia especificamente ao Escorel, mas a um posicionamento geral das pessoas que costumam extremizar a arte em Nacional X Internacional que é, de certa forma, um jeito de lidar com a vontade de fazer arte no Brasil sem a crença de que ela pode, de fato, ser feita aqui de forma independente.

E o principal foco de toda educação é a discussão -- ok. Eu apenas rascunhei o mais básico e específico do que eu acredito [talvez erroneamente, porque eu nem faço uma faculdade de arte né] ser a educação artística.

Cidadão ³ said...

Eu só disse que não era isso que o Escorel dizia porque, de certa forma, você fez parecer que era (tanto que há um "porém" no fim e sei lá o quê).

"Eu sou daqueles que acreditam que o Brasil já está fodido e que seria mentira se quiséssemos apontar para os bons tempos."