4. O Rastro Da Arte - Parte I

Thursday 15 January 2009

A arte de Nick Drake (à esquerda), doses ferrenhas de empenho técnico somadas a relances de noção poética com claustrofobia introspectiva, reflete nos acordes quebrados um alvorecer de sentimentos e novas descobertas. Pessoais ou não, tais investidas remontam e ilustram perfeitamente a noção já explanada de que algo tão complexo não pode ser descrito ou ensinado, mas deve ser, parafraseando Tarkovsky, compreendido como um eterno enigma. Tal arte mestra não deve ser adjudicada de obrigações historicamente convencionadas como lógica comum ou mensagem explícita, dogmas estes pregados pelo Homem durante várias gerações, mas merece tão somente o apreço e o reconhecimento - e é tudo que o artista pede, afinal; aplausos-, pois eis enfim a qualidade musical e artística elevada às últimas conseqüências.

E como não se é permitido o dizer sem o questionar (desde Sócrates, pelo menos
), tem-se impregnada por todo o parágrafo anterior a obviedade de um ponto de interrogação. Talvez, até mais de um. O que faz da obra de Nick Drake uma produção artística diferenciada, e o que significa elevar a qualidade artística às últimas conseqüências? Existe um parâmetro, um padrão crítico que infere e interfere na arte, no sentido de estabelecer o que é ou o que não é, de fato, bom ou qualificado? Seria simples e perfeitamente cabível responder à primeira pergunta com duas palavras, mas as demais indagações carecem de mais desenvolvimento. Não existe, de fato, parâmetro algum, nem "guia artístico" vigente que estabeleça o que é ou não bom, no tocante a arte, e isto o Homem e a História já trataram de provar. O que existe são os efeitos arrebatadores que uma obra "diferenciada" produz: algo indescrítivel e divino, que não pode ser por lei ou regra nenhuma, renegado.

Nasce, então, entrelaçada aos dois primeiros parágrafos, esmagada por outras idéias, a raiz carrancuda que dá base e razão de existir para este texto, que desenha em traços
p&b um fator desacreditado e ainda pouco esmiuçado pelos veículos da Crítica. Um efeito colateral, produzido pelo flutuar dos créditos finais, pelas reflexões posteriores e pela fluídez e evolução do público, que cria asas no partir do televisor à cabeceira da cama e e levanta vôo no quase-completo esquecimento humano.

Um "rastro" da arte; uma impressão final que exprime todo o conjunto de sentimentos que a obra monta e os agrupa numa só noção espasmática de sabor e cor fortes, definidas, porém paradoxalmente inconsistentes. Como quando um tolo adolescente dá atenção para uma obra de arte do nível e valor de Mushi-shi. A sensação voluptuosa de que a série está preenchendo vazios dimensionais inexcrutáveis é impressa nos fundos fantásticos e na animação abissal, e ainda o sabor de limbo com o qual as personagens são caracterizadas - cada uma tão real. É formada então uma crosta rígida que se acumula nos primeiros episódios e atinge o ápice orgasmático no último, mas que apenas é sentido quando tal adolescente cresce e recorda-se humildemente de um anime bonito com um rapaz loiro sobre espiritos medievais. E os fundos eram tão belos.

Ou ainda a sensibilidade com a qual os estúdios Ghibli desenvolveram o ambiente nostálgico de Porco Rosso. Há de se notar o saudosismo que se encontra na obra, nos bares com cantoras, no garçom que oferece bebidas no galpão, no jazz que circunda os figurões, e a delicadeza que o longa usa na hora de dizer adeus, sem quebrar nenhuma grande tradição ou tabu, apenas deixando o desfecho fluir livremente, com aviões planando pelo céu limpo. Nostalgia esta que pode também ser vislumbrada na animação do anime e que é sólida.

Posto isso, um efeito devastador de desilusão assola qualquer tola compreensão que se tenha sobre o poder da arte e os seus galhos. Até mesmo as tão amadas técnicas narrativas, gags, sacadas geniais de indumentária visual tornam-se apenas faíscas coadjuvantes que o atrito entre duas pedras produz antes de fazer o fogo. Por outro lado, é igualmente confortante saber que o mundo já lida com profissionais que compreendem algum fundo de verdade por trás disto, e já começam a trabalhar suas obras tirando por base um novo e completo conceito. Não foi por acaso que Richard Linklater, em seu jovem clássico, Antes do Amanhecer, recapitulou, antes dos créditos, cada cenário bastardo pelo qual passara sua dupla de protagonistas. Esse tipo de sensibilidade prova que não existiam, ali, tiros no escuro.

Da mesma forma, profissionais do ramo da música seguem a mesma linha há algum tempo, e isto é perfeitamente visível em grupos como Pink Floyd - em especial na gravação do single Echoes, que provavelmente deveria servir como parâmetro, se fosse utilizado algum. É quase casto o sabor que emana desta peça, ao passo em que ela funciona maravilhosamente como uma tradução para saudade. A mudez de cada verso, de cada bend, e os vocais de David Gilmour e Richard Wright (finado, porém eterno), literalmente, ecoando pela vitrola formulam uma essência nostálgica e sutil quase que desesperadora.

Surge então a percepção e a atenção para um fator que cresceu e se desenvolveu lado a lado com a história da arte, e uma nova certeza de que não existem certezas nesse ramo, a arte apenas cresce e o Homem idem. Os clássicos, estes ficam eternos, mas a maneira de enxergá-los se transmuta constantemente, num lindo movimento transbordante.

3 comments:

Jimmy said...

"Posto isso, um efeito devastador de desilusão assola qualquer tola compreensão que se tenha sobre o poder da arte e os seus galhos. Até mesmo as tão amadas técnicas narrativas, gags, sacadas geniais de indumentária visual tornam-se apenas faíscas coadjuvantes que o atrito entre duas pedras produz antes de fazer o fogo."


Resumindo, Children of men sucks.

Clementine said...

"Resumindo, Children of men sucks."

Você está debochando e eu não respondo a deboches. (tá, eu até responderia, mas estou indo procurar emprego, mais tarde, comento o post direito, mesmo se eu não conseguir o emprego, porque eu não sou o Theo, e a minha fé ainda não perdeu para o acaso.)

Sério, você fez o favor de citar a parte de Antes do Amanhecer que deixa todo mundo arrasado, gay. Sim, no contexto do post, faz todo o sentido. Mas, caramba, junta isso com o vazio do amanhecer e com tantas outras coisas que eu me sinto uma completa menininha meiga (e meu estômago acabou de revirar!).


Ok, como já disse, depois comento direito. "Lá vou eu de novo, brasileiro nato, se eu não morro, eu mato..."

sem mais said...

O rastro é o que se importa, I guess. Eu tinha escrito um troço, mas acho que rende um post, então até lá.