6. Jonathan Strange & Mr. Norrell (Susanna Clarke)

Saturday 24 January 2009

Existem várias obras que todos consideramos obras-primas mas que realmente não têm a atenção que merecem. É um mundo pequeno, com pouco tempo e com tantas coisas, afinal. Mas enfim, há uma obra em particular que, embora aclamada pela crítica (e não apenas por ela — o tal Neil Gaiman a chamou de melhor livro já escrito na Inglaterra em um bom tempo, ou algo para o mesmo efeito), e extremamente aclamada enquanto falamos disso, nunca realmente decolou ou atingiu um fandom além do minúsculo Friends-of-English-Magic. (não que este em particular seja o tipo de coisa que se beneficiaria de um fandom como os de, digamos, “Harry Potter” e “Crepúsculo”, sendo melhor assim. É apenas um fato curioso, visto que a Bloomsbury fez uma campanha quase viral para sua divulgação.)

Seu nome é “Jonathan Strange & Mr. Norrell”. (É possível, aliás, que qualquer um que tenha tido contato — qualquer tipo de contato — com Seu Humilde Escritor saiba que ele é possivelmente o maior fanboy disso existente no país, e foi baseado nessa informação que o tal Jimmy sugeriu “ei, por que você não escreve algo sobre Jonathan Strange na minha opinião” ou algo para o efeito.)

É difícil saber por onde começar sobre “Jonathan Strange”. A obra não é apenas um combinado de humor, ironia, o fantástico e o real mas um combinado de humor, ironia, fantástico e real de modo que o leitor não perceba realmente onde acaba um e começa o outro. É difícil encontrar um livro mais focado na “big picture” do que este: tudo contribui para o estabelecimento de um mundo crível, desde a interação dos costumes ingleses (imperdoavelmente zombados por Clarke, principalmente através do uso da palavra “inglês” ou dos adjetivos quase hiperbólicos associados ao modo de vida) com o fantástico até o fato de que o próprio fantástico é apenas um pano de fundo para os verdadeiros temas (tanto que vários críticos têm opiniões diferentes sobre o que “Jonathan Strange” é, variando desde de pura fantasia a romance histórico a realismo mágico).

Um deles é “relação”, que já começa expresso no título da obra: não é a história de “Jonathan Strange”, ou de “Mr. Norrell”, é “Jonathan Strange & Mr. Norrell”. Quase (e isso por si só já é contestável) todas as relações existentes no livro são disfuncionais a certo ponto: entre os dois magos titulares há intriga e sabotagem, entre Strange e sua esposa há um contínuo afastamento até conseqüências extremas, entre o misterioso cavalheiro mágico e o servente não há nada muito diferente de um dono e seu cachorro. São níveis de alienação próximos a Kafka, e quando acontece de dois personagens ficarem reunidos (o leitor verá), o resultado não passa de jeito nenhum uma imagem de algo positivo.

Há também algo mais sobre auto-destruição. Norrell vive sozinho por um bom tempo e acaba enterrado sob seus próprios livros (não no sentido literal), Strange causa não só a perda de seus próprios entes queridos como também sua própria loucura (e isso não é realmente uma das grandes surpresas do livro, na verdade), tentar alcançar poder e habilidades através do emprego de seres mágicos nada causa além de sofrimento e dor (veja que um dos poucos amigos dos seres mágicos são loucos). A magia aqui é uma ferramenta de destruição: destruiu a carreira dos falsos magos, destruiu o império napoleônico e acaba por destruir os próprios personagens. Por outro lado, ela é ainda apresentada como algo maravilhoso: presentes dados aos grandes magos de outrora eram dados pela própria natureza, e a magia que eles faziam por capricho não tinha menor efeito que o de dançar com a realidade e alterar vidas. Tem algo quase prometeano aí.

Aliás, a colocação da magia mais “lugar-comum” (a magia como profissão) como algo de nível baixo e não realmente muito nobre reflete a sociedade inglesa. O fato de Norrell ler um livro em uma festa é visto como uma demonstração de quão escandalosamente ruim a festa estava, e o fato de magos nada mais serem além de quase-camelôs (e depois disso apenas joguetes do exército) é talvez uma amostra de quão decadente a sociedade estava ao descartar o fantástico por algo mais seguro e mais “inglês”. A maneira como Clarke aponta isso nunca fica muito distante do hilário.

E finalmente, o aspecto fantástico do livro se junta muito bem com o real. As notas de rodapé fazem uma Inglaterra alternativa mais crível (e sempre são interessantes, além de contribuírem para mostrar o quão obcecados por conhecimento e história os magos são—um crítico chegou até ao ponto de dizer que o principal personagem do livro são os livros justamente por este fator), e as belíssimas ilustrações quase surreais de Portia Rosenberg criam o sentimento necessário para aproveitá-lo (não que a escrita em si não pudesse fazê-lo sozinha, mas enfim, é lindo).

Versão tl;dr: “Jonathan Strange & Mr. Norrell” é uma obra-prima.

3 comments:

Clementine said...

"Mas enfim, há uma obra em particular que, embora aclamada pela crítica (e não apenas por ela — o tal Neil Gaiman a chamou de melhor livro já escrito na Inglaterra em um bom tempo, ou algo para o mesmo efeito)"

Olha o Merchandising!

E eu nunca li o livro, embora já tenha ouvido falar bastante, e já tenha me interessado por ele.

Quando tiver oportunidade (leia-se: encontrar alguém que tenha o livro para me emprestar, porque eu não tenho R$ 62,50 para comprá-lo!), lerei.

E, ah! já ia me esquecendo, ótima resenha.

Jimmy said...

Sim, mas o paradigma dA Volta da Magia e a relação com tal fenômeno e o que os dois magos tinham feito, até então, é a melhor parte do livro.

Acho que Norrell foi quem disse que se a volta da magia for o que ele pensava ser, tudo que ambos os magos tinham feito era apenas o mesmo que duas crianças brincando com fósforos, num quintal de casa.

Algo assim. Genial.

Rei Corvo é um dos personagens mais interessantes do livro, e ele nem chega a participar efetivamente do enredo (o que só confirma o seu ponto de que o forte do livro são as referências que dão credibilidade à estória etc).

jair said...

Parabéns. Ótimo livro, ótimo comentário.